Amordeperdicao.pt » 01/15/2018

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Crónicas

O Som do Silêncio

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Como melhorou a qualidade do som nos filmes portugueses! Lembro-me de que, ainda há não muito tempo, as fitas nacionais quase precisavam de vir legendadas. Ou então, que os espectadores fizessem cursos-relâmpago de leitura de lábios. Felizmente, hoje já não é assim. Agora só faltam os diálogos que valha a pena ouvir.

Claro, estou a brincar. Mas desde o início o som foi uma fonte de controvérsias na jovem arte cinematográfica. O cinema tornou-se sonoro, e depois falado, um pouco por acaso, porque a Warner se encontrava à beira da falência e tentou, como última cartada, uma experiência diante da qual as concorrentes recuavam, receando um desastre comercial. Bem, parafraseando o impagável produtor Samuel Goldwyn, ninguém gostou daquilo – excepto o público.

Sim, as platéias aderiram com entusiasmo à novidade, mas os cineastas e os críticos torceram os narizes. Pudovkin, Eisenstein e Alexandrov publicaram um manifesto contra o som, alertando para o perigo do «teatro filmado». René Clair também fez uma birra. Mas o mais amuado foi mesmo Chaplin: «Os filmes falados? Odeio-os! Vieram estragar a arte mais antiga do mundo, a arte da pantomima. Destroem a beleza do silêncio». OK, ele lá tinha as suas razões para achar que mais valia estar calado. É como observou mais tarde o mordaz Billy Wilder: «Quando Chaplin ganhou uma voz para dizer o que se passava na sua cabeça, foi como se uma criança pusesse uma letra na Nona Sinfonia de Beethoven».

Tratava-se, claro, de um lamentável equívoco: os mestres do mudo tomavam por trunfo o que não passava de uma lacuna. Às vezes, é verdade, a falta de som estimulava a criatividade de uma maneira cómica: no clássico «Napoleão», de Abel Gance, durante um ataque ao forte de Toulon pelas tropas franceses, todos os soldados que tocam tambores são instantaneamente mortos.
Logo se verificou que o sonoro exprimia melhor até o próprio silêncio. No sonoro, o silêncio adquiriu um valor positivo, de que estava privado na uniformidade taciturna do mudo. Assim, depois de, por exemplo, uma música retumbante, o súbito silêncio assume uma intensidade conceptual. Só o sonoro pode, por contraste, representar o silêncio sepulcral. Para não falar no minuto de silêncio (que, no mudo, eram todos).

É certo que estamos a falar de um realismo dúbio, isto é, na maior parte das vezes «pós-sincronizados», ou seja, registados em estúdio depois das imagens. Isso porque, devido aos caprichos da técnica e da física, uma parede, um vidro ou uma escada gravadas ao ar livre não produzem um som «autêntico». Por outro lado, há certos ruídos que já foram registados de uma vez para sempre: pode comprar-se, nas lojas da especialidade, um canto de galo, um bramido de ondas ou um coaxar de rãs. Só não se pode comprar é bons diálogos.

E há, naturalmente, a música. No cinema, a música pode assumir dois papéis: de ambiência ou contraponto (ou paráfrase). A primeira é, digamos, decorativa (não quer dizer que seja supérflua). A segunda pode tornar-se dramática. Se for de certos compositores que a gente sabe, tornar-se-á seguramente melodramática. Como disse o outro, a música japonesa é uma tortura chinesa.
Sem som e sem música, não haveria os musicais. E, sem os musicais (que, por ironia da história, brilharam na Metro e não na Warner), não haveria Fred Astaire. Bom, por causa de um bisonho executivo de Hollywood, que avaliou o primeiro teste do futuro maior bailarino da Sétima Arte, quase que não houve de facto Fred Astaire. Eis o veredicto da sumidade, quando Astaire acabou o seu número: «Não sabe representar. Ligeiramente careca. Dança um bocadinho».

Hoje, ninguém com cinco gramas de miolos duvida de que o cinema seja a imagem unida à palavra, ao ruído e à música. OK, cada macaco no seu galho. Frank Sinatra, por exemplo, embora tenha embolsado um Oscar de melhor actor secundário, continua a pertencer mais à música do que ao cinema. Ou, como alguém resmungou: «Tirem o microfone e a orquestra a Sinatra e o que é que lhe restaria? Trabalhar numa pizzaria!».